quinta-feira, 23 de junho de 2016

O bolo

A semana começou com a missa na segunda feira. Pois o pai não admitia que as datas comemorativas da família passassem em branco, muito menos aquela. A festa seria no sábado, quanto a isso ele não via problema, mas a missa de quinze anos de Sofia, a filha primogênita, tinha que ser no dia do aniversário. A celebração que além de ser em dia de semana foi pela manhã, não pôde contar com a presença da maioria dos convidados, mas o pai, Alfredo, não se comovia:“- Comemoração de aniversário é no dia”, dizia ele em tom certeiro. A família também não se abalava, pois aquilo já era um hábito antigo que não causava nenhum tipo de estresse, muito pelo contrario, por muitas das vezes gerava mais de um festejo para o mesmo evento, como seria o caso daquele aniversário. Após a missa Sofia se despediu dos poucos que compareceram e foi almoçar na companhia dos pais e avos em um restaurante perto da igreja. O almoço foi seguido do tradicional canto em volta de um pequeno bolo dos parabéns com gritinhos de saúde a aniversariante, exigência do pai que fazia questão, o que embora não agradasse muito a filha, que morria de vergonha daquelas manifestações em publico, sabia que de nada adiantaria protestar e fingia que gostava para seu desconforto acabar mais rápido. Após a família terminar de comer o bolo e a mãe servir alguns pedaços para os poucos clientes que estavam no restaurante e participaram dos parabéns, fazendo Sofia corar ainda mais de constrangimento, o pai tirou do bolso do paletó do terno, feito especialmente para data, uma caixinha de veludo e entregou a filha, que se surpreendeu quando abriu e viu que tinha dentro um anel de ouro com um pequeno brilhante no centro e todos bateram palmas, chamando mais uma vez a atenção dos outros clientes que acompanharam os aplausos, mas desta vez Sofia não pareceu ligar muito para o que ocorria a sua volta, estava emocionada, levantou e foi dar um forte abraço no pai e em seguida na mãe e assim foi o dia do aniversário, feliz e em família como era de costume.  A semana seguiu nos preparativos da grande festa do sábado, que teria a presença de todos os amigos e familiares. A aniversariante não cabia em si tamanha era a sua ansiedade, contava os dias para chegada do evento que estava sendo preparado com muito carinho pela mãe, Eleonora, que havia se encarregado pessoalmente pela execução dos quitutes e do bolo, como fazia todos os anos e naquele não poderia ser diferente, estava empenhadíssima para que tudo fosse perfeito, afinal era uma data especial, quinze anos de sua filha mais velha. Na véspera do grande dia a mãe amanheceu na cozinha. Começou pelo bolo, às oito horas da manhã já havia batido e assado a massa e colocado para esfriar para ser regada posteriormente com a calda de doce de pêssego em lata.  Eram vários tabuleiros de diferentes tamanhos, o objetivo era montar um castelo com cascata de frutas frescas, seria uma tarefa difícil, nunca havia feito um bolo com tamanha complexidade, mas estava confiante e animada que daria certo. Para o recheio fez uma mistura de ameixas, doce de leite e nozes picadas, uma verdadeira delicia. Nesse maio tempo... o marido chega do mercado com as sacolas apinhadas dos ingredientes que estavam faltando para o preparo das guloseimas da festa e começa a esvazia-las e colocar as compras em cima da mesa e a apreciar, com orgulho, a mulher em atividade, mas a mesma logo o conduz para fora da cozinha, uma vez que não queria ter sua atenção desvirtuada para não comprometer a elaboração de sua obra prima. Alfredo então vai ler o jornal na sala e deixa a mulher com suas atividades na cozinha. Eleonora volta ao trabalho desenformando os tabuleiros, que já estavam frios, em uma tabua posta sobre a mesa com todo cuidado, iniciando assim a montagem do bolo. Seu coração batia rápido em uma combinação de ansiedade e felicidade, mas também por sua ousadia em fazer algo tão arriscado para o aniversário da filha, mas ao mesmo tempo sentia-se segura para continuar na tarefa. Então começou a abrir as latas de doce de pêssego e a molhar o bolo com a calda seguindo com a colocação do recheio e desenformando outro tabuleiro e assim por diante e quando já estava com o que deveria ser à base do castelo praticamente montada, viu que havia, inadvertidamente, entre uma lata e outra do doce de pêssego, aberto algumas de salsicha postas na mesa pelo marido, que eram para o cachorro quente, que se misturaram as do doce. Quando Eleonora se dá conta do engano começa a extrair, de maneira frenética, os pedaços onde supunha que tinha derramado o caldo da salsicha, ela gritava loucamente tamanho era o seu desespero em imaginar que poderia arruinar o bolo, achava que se demorasse a tirar a parte atingida o gosto iria entranhar de tal forma que não teria mais jeito e é nesse exato momento, que a avó da aniversariante, D. Clotilde, chega para saber como estavam os preparativos da festa. Era uma senhora idosa de seus oitenta e poucos anos, se locomovia com dificuldade com auxilio de uma bengala dado a artrose avançada nas duas pernas. Ela entrou chamando pela filha e logo percebeu que algo estava errado devido aos gritos que vinham da parte de trás da casa e seguiu aflita para ver o que está acontecendo e quando chegou à cozinha, onde a essa altura já estava lá também o genro que foi atraído pelos brados da mulher, dá de cara com aquela cena e como que tomada por uma força, que não soube explicar depois de aonde veio, largou a bengala e agarrou os braços da filha, que a todo custo tentava se desvencilhar. D. Clotilde sacudia Eleonora com tamanha avidez, inconcebível para seu estado físico, e dizia que a filha estava possuída por maus espíritos e ordenava com gritos de guerra para os mesmo se afastarem e começou a rezar e fez sinal para que o genro a ajudasse mandando-o trazer um copo de água com sal, ele sem protestar obedeceu, estava assustado demais para questionar qualquer coisa. As duas ficaram ali travando uma luta e Alfredo, totalmente apavorado com estado da mulher e, por conseguinte com o de D. Clotilde e ao mesmo tempo com medo de ser também possuído pelos maus espíritos, que a sogra insistia em querer expulsar, ali permaneceu inerte e sem coragem de abrir os olhos e dando graças a Deus pela filha estar na escola e não em casa naquele momento. De vez enquanto até arriscava abrir um dos olhos para ver como estavam as coisas, mas fechava em seguida com todas as forças que lhe restavam tamanho era seu pânico. Eleonora tentava apontar para o bolo, gritando que tinha que salvá-lo, mas D. Clodite não entendia os apelos da filha e a segurava pelos braços com vigor, molhava-a com a água com sal e a chamava pelo nome achando que assim a traria de volta ao seu estado normal quando de repente se deu conta de que a filha estava se referindo ao bolo e parou por um minuto num misto de descoberta e espanto: - O bolo?! É ele?! Eleonora se sentindo aliviada por finalmente ter conseguido se fazer entender, respondeu afirmativamente apontando para o bolo repetindo “sim” aos berros por diversas vezes. D. Clotilde então largou a filha no chão, não se sabe como, mas ela estava com uma força extraordinária, mirou na tabua, que já estava com a base do castelo montada, e em um só golpe a puxou e em seguida pegou as massas assadas que ainda estavam nos tabuleiros e fez uma pequena montanha no chão da cozinha a qual pisoteou de maneira inacreditável, para alguém que como ela tinha artrose nas duas pernas o que lhe limitava os movimentos, sob os gritos que o mesmo estava enfeitiçado. Eleonora se agarrou aos pés da mãe, tentou impedi-la, mas de nada adiantou, ela só parou quando apenas restaram farelos espalhados por todo o chão. D. Clotilde sentindo-se plenamente satisfeita como uma verdadeira heroína que acabara de salvar a filha sentou em um banquinho no canto da cozinha e disse:      - Pronto filha! Tudo resolvido! Nossa, temos que mandar benzer essa casa antes da festa, mas deixa comigo, mamãe resolve. Alfredo, que finalmente conseguiu abrir os olhos e sair do lugar de onde estava imóvel, foi até a mulher tentar ajudá-la a se levantar, mas Eleonora sem forças para mais nada recusou o auxílio do marido e permaneceu no chão observando a mãe que falava sem parar dos maus espíritos que invadiram o bolo de quinze anos da neta e de como ela havia resolvido a situação. D. Clotilde seguindo em seu estado de graça de semideusa dirigi-se a ajudante da casa Gertrudes, que acabara de chegar para o trabalho e olhava espantada para tudo aquilo sem entender o que estava acontecendo, e pede para que lhe preparasse um café bem forte e quente com torradas, manteiga, queijo e geleia, dizendo que já estava ali há tempos e ninguém havia se lembrado de lhe oferecer nada para comer.

Nenhum comentário:

Postar um comentário